domingo, 13 de novembro de 2016

O JARDINEIRO DO AMOR : - Alfredo Mignac


                                                                      


João 20: 11-16
(Poesia sobre a ressurreição)

Madrugada de luz, de paz e de vitória...
Jesus ressuscitara em meio à maior glória!
Por terra inerme, jaz, toda a guarda romana
e a potência do Império, abjeta, vil, profana
a intriga farisaica, o ódio do judaísmo
varrido como pó no ardor do cataclismo.
A cruz negra, de fel, para sempre vencida,
e invés da guerra, o amor; e invés da morte, a vida!

Maria Madalena o sepulcro, bem cedo,
foi visitar  levando a alma cheia de medo.
Temia a guarda. Era inda escuro. A estrela
radiante da manhã, parecia que, ao vê-la,
abria em leque, espadanando a luz imensa,
como para o caminho seu iluminar
e Jesus Ressurreto ao mundo anunciar!

Umas flores ao braço e bálsamo olorante
para a tumba de Quem, agora tão distante
não pode mais ouvir gemer o desgraçado,
nem o pobre sem pão, nem o degenerado,
nem o cego sem luz, nem da viúva tristonha,
ferida pela dor de saudade medonha,
os queixumes de morte!

– Ele, que era tão santo,
que da mãe triste, e aflita estancou tanto pranto,
que da doce criancinha a cabeça afagou,
de tantos males, tantas dores nos livrou...
Ele da morte está no cárcere maldito,
Envolto no mistério abstruso do infinito!
Para mim, que mulher outrora era do mundo,
seu amor, foi supremo; e seu perdão, profundo!

Dizia assim Maria, enquanto caminhava
para o jardim sombrio onde o sepulcro estava.
A dúvida pairava em seu cérebro ardente
e o coração no peito arfava tristemente!
O seu corpo, embuçado, era um fantasma esguio
que passava na noite exânime, de frio...
– Autômato, sublime, a correr, todo alerta,
ia depor aos pés do “morto” a última oferta
de um coração sangrando e uma fé impoluta,
frutos do grande amor de sua alma então sepulta!

Chegou. Eis o jardim de José de Arimatéia,
um discípulo oculto, um nobre da Judéia.
Aproximou-se. Ao longe, a dúbia luz boreal
refletia no céu. Silêncio matinal...
E sobre a enorme pedra – a que a tumba fechava,
mais belo que o clarão da Aurora que raiava
um ser angelical olha a tumba vazia!
Maria Madalena ao vê-lo, se extasia...
o seu rosto molhado em lágrimas de dor,
 – oh, se ela o visse! Tinha o tom divino, a côr
do jaspe reluzente ao sol entrando o Ocaso,
da luz a palidez no lago argênteo e raso!

Esboçando um sorriso, erguendo a fronte brada
o ser angelical, num toque de alvorada:
         Por que choras, mulher?
         E ela o pranto oprimindo:
         – Levaram meu Senhor...
           E soluçando e saindo,
foi gemer tristemente a um canto do jardim,
dando toda a expansão à sua dor sem fim!
Nisto, encontra um varão bem perto do canteiro,
a fitá-la de pé. Por certo o jardineiro...

       – Por que choras, mulher?
       E ela, o pranto oprimindo:
– Levaram meu Senhor. Eu o estou procurando.
Dize-me onde o puseste e o levarei comigo,
pois é meu Rei, meu Deus, meu Senhor, meu amigo!
E o jardineiro, olhando a sua alma em agonia,
Descobre-se afinal, bradando alto:
                                                                  – Maria!
Ela respondeu: – Mestre!
E cheia de ventura
ajoelha e o adora. A sua alma esclarecida e pura,
tornou-se num jardim de gozo e de dulçor.
Onde o húmus era a fé, onde a seiva era o amor,
as flores o perdão, e o trescalar ativo,
a epopeia sem par do Cristo Redivivo!

sábado, 12 de novembro de 2016

MOÇA ME DA UMA ROSA. - Mário Barreto França


                                                                                                  
                           
Era um triste contraste aquele, distinguido
Numa encosta escarpada e num vale florido:
Lá no morro, o barraco ao vento se inclinava;
No vale, um palacete, entanto, se enfeitava
De rosas, de jasmins, de pássaros joviais
Que adejavam, cantando, os lindos roseirais...

O barraco de zinco e o bangalô de pedra
– Onde  a miséria mora e onde a fartura medra –
Eram naquela parte estreita da paisagem
Antônimos cruéis que, na louca voragem
Da vida singular, excêntrica ou profana,
Confundem na incerteza a indagação humana...

Qual a causa que leva um dia a Onipotência
A dar rumo diverso a cada uma existência,
Que às vezes se coloca em destaque chocante,
Como revolta muda ou protesto gritante?

Por que, sem ter noção ainda do pecado,
Há de nascer alguém surdo, cego, aleijado?
Por que será, meu Deus, que, pobre e sofredor,
Se arrasta, muita vez, quem só pratica o amor?

– Para  ser manifesta a grandeza de Deus!

No casebre de zinco, um garoto pretinho
Vivia a contemplar das palhas do seu ninho,
Lá embaixo, ao sopé do morro proletário,
O formoso jardim do seu sonho diário
Que, à sua alma infantil de ingênuo espectador,
Representava o céu numa festa de flor.

Numa certa manhã de ensolarado brilho,
O garoto desceu do morro, maltrapilho,
E ficou enlevado, a contemplar, assim,
O viço tropical de tão belo jardim...

Como era tudo ali cromático e festivo!

Porém aquela flor, de rubro muito vivo,
Exercia sobre ele uma fascinação,
Que a mundos irreais sua imaginação
Levava a percorrer em vôos de magia,
Nas asas alvi-azuis de sua fantasia...

E, nesse doce enlevo, angélico semblante
Ele descortinou, olhando-o fascinante,
No veludo-cristal da corola formosa
Daquela rubra flor, daquela linda rosa...
E, a seu ávido olhar, a aparição amada
– Anjo,  deusa ou visão de algum conto de fada
Saiu da inspiração de um sonho rosicler,
Para se revelar simplesmente mulher:
Jovem, de olhos azuis e loira cabeleira
– Nova Branca-de-Neve ou Gata Borralheira...
E por isso ensaiou um pedido inocente:
– Moça , me dá uma rosa, uma rosa somente!...
Mas a jovem falou com desprezo invulgar:
– Vá  embora daí! Não torne a importunar!

O garoto ficou ainda um pouco parado;
Depois, triste, baixou os olhos, humilhado,
E saiu arrastando os pés, devagarinho,
Pela esteira sem luz do seu pobre caminho.
Como lhe pareceu tão mau o injusto o mundo;
Sufocou na garganta um soluço profundo,
Numa interrogação que ficou sem resposta:
– Por que, por que de mim essa moça não gosta?
Por que ao desgraçado aqui se nega tudo,
Até mesmo uma rosa? ... uma rosa?!...
Contudo
Tão pouco ele queria! E esse pouco, entretanto,
Lhe negavam sem dó, para aumentar-lhe o pranto...

O mundo é sempre assim: esconde a mão ao pobre,
Para fartar na orgia os caprichos do nobre!

No outro dia, bem cedo, às grades do jardim,
O garoto de novo estava a olhá-lo, assim:
Na ânsia de retratar na alma sentimental
O quadro multicor daquele roseiral,
Para poder sentir, dentro da própria vida,
O sonho irrealizado, a glória inatingida...

Quando a jovem surgiu de novo, entre os canteiros,
Seus olhos outra vez brilharam prazenteiros,
E cheio de esperança, à jovem tão formosa,
Com ternura pediu: - Moça, me dá uma rosa!

Agastada, porém, com o pedido insistente,
A jovem lhe negou o esperado presente:
– Vá  embora daí, se não eu chamo um guarda!...
Temendo a intervenção enérgica da farda,
O pretinho correu em direção ao morro,
Lançando ao ar parado um grito de socorro,
Que não achou, naquela esplêndida manhã,
Qualquer repercussão na piedade cristã...

O tempo começou a mudar de repente;
Fatídico soprava o vento fortemente.
Tremendo, o órfão entrou no barraco de zinco;
Viu as horas passar: duas, três, quatro, cinco...
E ele, que lá vivia apenas por favor,
Não tinha pai nem mãe, ele não tinha amor...

Deitou-se; adormeceu, sonhou com o paraíso
– Edênico  jardim – onde ele viu, iriso,
O sol resplandecer numa rosa vermelha
– Sua  rosa vermelha! – e ante ela se ajoelha...

Nisto, estranho rumor, como um forte trovão,
Fê-lo um anjo notar, levando-o pela mão,
Para, de um lindo quadro, erguer o tênue véu:
– Ele  entrava no céu... ele entrava no céu!...

Mas, na manhã seguinte, ouviu-se o comentário:
Durante o temporal, no morro proletário,
Houve um desabamento; e o pretinho – coitado! –
Ingênuo sonhador – morrera soterrado...

Sob um sol indeciso, à hora costumeira,
Regava o seu jardim a jovem jardineira.
Por um gesto instintivo, ergueu o olhar às grades:
– Vibrava  no éter frio as ondas das saudades –
Não viu, como esperava, o rosto do pretinho:
– Não  voltaria mais? Seguira outro caminho?!...
E, nessa confusão de um vago sentimento,
Sentiu no coração fundo arrependimento
De não ter satisfeito o anseio do menino...
Foi quando alguém lhe trouxe a notícia:
– O destino
Tinha roubado a vida ao pequenino triste!...

Ela não pôde mais; ela não mais resiste,
Prostrando-se a chorar...
E, logo, decidida,
Tirou de seu jardim, não só a flor querida,
Mas todas; e as levou com carinho e cuidado
Pra com elas cobrir o corpo inanimado
Do pretinho infeliz...
E ele, que não tivera
Na existência um lençol, ganhou da primavera
Um manto todo em flor, a envolver-lhe, afinal,
Com carinho e perfume, o corpo angelical...

***

No contraste da vida infausta ou abastada,
Nós somos muita vez como o órfão e a galã,
Negando do consolo uma rosa encarnada,
Para as faltas de amor chorarmos amanhã...

E ao peso acusador de líricas saudades,
Vamos levar depois às mortas ilusões
Todo o rubro rosal das oportunidades,
Que deixamos passar sem úteis decisões...

Que possamos abrir as grades do egoísmo
E oferecer a quem suplica afeto e paz
A rubra flor da fé do eterno cristianismo,
Que na alma, a rescender, não murcha nunca mais!

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Pensando - Mário Celso Rodrigues

No que estou pensando, se é que há tempo para pensar...

{...} Mecânico e fatal o eco responde: ... pensa...

Pensar? Como, pensar? Perder a mocidade
no egoísmo sem razão dessa inutilidade...
Pensar apenas? Não, teria acaso um fim,
pensar, pensar, pensar... de mim e para mim?
Esgotar a existência em um plano ilusório,
sozinho usufruir da paz de um escritório?
Quero menosprezar a vida dissoluta...
Mecânico e fatal o eco responde: ... luta...

Lutar... por que lutar... ver bandeiras aos ventos, {...}

   Meu amigo Gióia Jr. - de saudosa memória - escreveu essa estrofe em seu poema intitulado "O Eco", não todo o poema, que ilustra o que escrevo, mas, na pergunta inicial que o facebook nos faz a todos parei para refletir. Estava antes de joelhos conversando com o Soberano e Criador de todas essas maravilhas que o homem cuidou de destruir e, pasmem, destroem-se a si próprios. Como se não bastasse, para fazer valer suas ganâncias e sede de poder, destroem a outros também.
   Estava de joelhos conversando com o Soberano Deus e, em nome de Jesus, disse a Ele muitas coisas que entristecem, não só o meu coração, mas, também aos dos demais que O buscam e com Ele tem compromisso firmado. Levantei-me e pus-me a pensar nas coisas que Ele me disse enquanto conversávamos.
   Pensar, é bom que pensemos antes de qualquer atitude tomar, melhor será se a Deus nossos pensamentos entregar... Nele, com certeza as respostas aos nossos pensamentos virá.
   Em nossa conversa, dizia com a força de meu coração, mesmo me sentindo com a alma abatida do quanto o povo humilde que amo tem sofrido com as opressões, frustrações, enganos... desesperanças e abandonos. Não há em quem confiar... confiar – não foi um eco – mas sua Palavra dizendo-me que “a justiça dos homens é como trapo de imundície...” Amargurado falei que aqueles a quem Ele elegeu para nos conduzir, como rebanho Seu, a pastos verdejantes tem, na realidade, nos levado a cochos com lavagens que são servidos aos porcos; não temos sido encaminhados às águas tranquilas, límpidas e refrescantes, mas sim, águas turvas e mornas que não saciam as nossas sedes. Estes tem se preocupado, não com as viúvas e órfãos, mas, com os gerentes das instituições financeiras. É estarrecedor, de joelhos prostrados disse ao meu Senhor, vê-los no campo político – não orientando Suas ovelhas – mas, se mancomunando com políticos corruptos e soberbos, verdadeiros lobos, tornando vulnerável todo o rebanho... Sua Palavra soou por todo o meu “quarto de guerra” como que irado “Ai dos pastores que apascentam a si mesmos” e em tom mais suave continuou “Levantarei pastores que as apascentem, e elas jamais temerão, nem se espantarão; nem uma delas sucumbirá”.
   Como em todos os momentos em que com Ele converso, meu coração sente alívio e minha alma se aquieta.
   Assim, de joelhos, conversando com o Todo Poderoso Deus, pedi-lhe forças para atravessar todas as sendas de espinhos que há de se colocar a frente dos que O temem e seguem. Haverá perseguições... Momentos em que nos forçarão a negar o nome de Jesus Cristo em troco de nossa vida... Roguei pelo meu povo, povo humilde e bom, trabalhador e ordeiro, supliquei pelos que nos governam... Clamei pelo Brasil – terra que amo – pois em seu berço nasci... Acalmando todo o meu ser, Sua voz suave ouvi:  “Não se turbe o vosso coração... Crede em mim... E, no mundo tereis aflições, mas, tende bom ânimo... Eu venci o mundo”.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Perguntaram o que acont... - Pablo Neruda

Perguntam o que acontecerá com a poesia no ano 2000. É uma pergunta difícil. Se esta pergunta me assaltasse num beco escuro eu levaria um susto de - Pai e Senhor meu! Porque o que sei eu do ano 2000? Do que estou seguro é de que não se celebrará o funeral da poesia no próximo século.
Em cada época deram por morta a poesia, mas ela se vem demonstrando vitalícia, ressuscita com grande intensidade, parece ser eterna.

A poesia acompanhou os agonizantes e estancou as dores, conduziu às vitórias, acompanhou os solitários, foi ardente como o fogo, ligeira e fresca como a neve, teve mãos, dedos e punhos, teve brotos como a primavera: Fincou raízes no coração do homem.  

(Pablo Neruda)      

sábado, 13 de agosto de 2016

Um pouquinho do muito de meu pai - Mário Celso Rodrigues

Azaleias e “Bougainvilles”, suas flores preferidas. Nada tinha com a poesia, com as letras não tinha intimidade, não escrevia as linhas, vivia as estrofes e declamava os encantos da vida, nunca o vi triste, ser gentil era um dos defeitos; as crianças lhe amavam, os adultos, bem, os adultos ele aturava...

Se me lembro, poucas foram as varadas – goiabeira das goiabas brancas – bem na diagonal da porta da sala... Sua sabedoria em muito suplantava as leis da psicologia moderna, valorizo as poucas vezes em que senti as lambadas...  Cresci, me tornei homem e, bem no início da fase “do tudo saber”, dei-lhe pesada resposta, estava regressando do quartel, da farda verde-oliva pediu-me que a despisse... Foram as últimas varadas... As lágrimas desceram de seus olhos, que se uniram as que desciam  dos meus, não resisti aos seus braços abertos e num convulsivo abraço unimos nossos sentimentos.

Grande amigo e mestre, na firmeza de suas convicções extingui meus medos. Aprendi a amar e respeitar aquela com quem minha família iria formar... Logo, Deus lhe presenteou com netas, tanto amor e carinho, desprendimento e entrega... E, nós – dois – os filhos aprendendo a ser pai.

Bem cedo ele se foi, ficou a saudade... Não mais ouviremos as melodias que em seu tom baixo cantava após a leitura bíblica antes do sono fecharem nossos olhos de garoto travesso – nossa mãe fazia as leituras após o jantar. Com as letras ele não tinha intimidade, amava as flores e muito bem delas cuidava... Não mais o veremos distribuindo mudas entre os vizinhos mais achegados... Ele se foi, ficou a saudade e o legado. Legado de um coração generoso que se compadecia da dor de qualquer um outro... Vivia as histórias que hoje contamos...

domingo, 7 de agosto de 2016

Oração da maçaneta - Gióia Jr.

Não há mais bela música
que o ruído da maçaneta da porta
quando meu filho volta para casa.

Volta da rua, da vasta noite,
da madrugada de estranhas vozes,
e o ruído da maçaneta
e o gemer do trinco,
o bater da porta que novamente se fecha,
o tilintar inconfundível do molho de chaves
são um doce acalanto,
uma suave cantiga de ninar.

Só assim fecho os olhos,
posso afinal dormir e descansar.

Oh! a longa espera,
a negra ausência,
as histórias de acidentes e assaltos
que só a noite como ninguém sabe contar!

Oh! os presságios e os pesadelos,
o eco dos passos nas calçadas,
a voz dos bêbados na rua
e o longo apito do guarda
medindo a madrugada,
e os cães uivando na distância
e o grito lancinante da ambulância!

E o coração descompassado a pressentir
e a martelar
na arritmia do relógio do meu quarto
esquadrinhando a noite e seus mistérios.

Nisso, na sala que se cala, estala
a gargalhada jovem
da maçaneta que canta
a festiva cantiga do retorno.
E sua voz engole a noite imensa
com todos os ruídos secundários.
- Oh! os címbalos do trinco
e os clarins da porta que se escancara
e os guizos das muitas chaves que se abraçam
e o festival dos passos que ganham a escada!
Nem as vozes da orquestra
e o tilintar de copos
e a mansa canção da chuva no telhado
podem sequer se comparar
ao som da maçaneta que sorri
quando meu filho volta.

Que ele retorne sempre são e salvo,
marinheiro depois da tempestade
a sorrir e a cantar.
E que na porta a maçaneta cante
a festiva canção do seu retorno
que soa para mim
como suave cantiga de ninar.

Só assim, só assim meu coração se aquieta,
posso afinal dormir e descansar.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Saudades - Texto de Mário Celso Rodrigues

     A tarde é fria, a noite caindo anuncia que mais gélida há de ser... Me vem o calor de sua voz... Seus gestos trêmulos, suas mãos enrugadas acariciando minha face ainda jovem... Seus olhos já opacos dizem-me o quanto brilharam um dia – no momento em que dedilho minhas lembranças, me ocorre um sorriso tímido  –  três foram os momentos... Ela me confessou um dia – o primeiro momento foi quando conheci seu pai, o segundo foi quando você nasceu, muitos foram os outros, mas, o terceiro ficou marcado em mim, o nascimento de seu irmão – no nascimento das netas, seus olhos também brilharam.
     Não mais verei,  seus olhos não mais me chamarão a atenção por algum deslize que eu tenha cometido, nas tardes frias não mais o calor de sua voz me oferecendo uma bebida quente. 
– Meu filho acabei de passar um café pra você, fiz também um bolo, eu sabia que você viria...
     Nossas conversas, seus conselhos não mais terei... Não me ouve... Não me vê... As delícias do paraíso onde hoje ela está são bem além do que posso imaginar. Nestas minhas lembranças de um final de tarde... fria tarde, de meus olhos correm gotas de saudades, doces saudades...  limpas e livres saudades, sem as manchas do remorso e nunca presa a algum sombrio passado.
     Saudades esperançosas do reencontro... Inda infante, com o “Manual da Vida”, que chamamos também de Escrituras Sagradas,  outros a definem como Bíblia Sagrada e,  ela de uma forma reverente intitulava de – A  Palavra de Deus, em suas mãos ainda firmes, nos ensinava a amar a Deus e o quanto Jesus Cristo sofreu para nos assegurar a vida eterna... Não mais sou infante, mas, tenho a certeza de que seus ensinos me tem valido, no dia a dia tenho comprovado tudo o que por ela me foi ensinado... “Um dia nos encontraremos na eternidade e juntos entoaremos louvores a Quem nos criou e por amor à terra desceu”. 
     Suas palavras firmes com voz firme... Já não tão firme... Já trêmula em seus últimos dias... A certeza do que dizia brilhava em seus olhos opacos... Para o mundo seus olhos agora fechados. Mas, radiava em sua fisionomia o quão feliz era estar junto do Pai, nas ruas de ouro com os arcanjos celestiais... Dela me despedi, na terra, não mais a verei –minhas tardes serão frias, minhas  noites gélidas... Até um dia no porvir.