sábado, 13 de agosto de 2016

Um pouquinho do muito de meu pai - Mário Celso Rodrigues

Azaleias e “Bougainvilles”, suas flores preferidas. Nada tinha com a poesia, com as letras não tinha intimidade, não escrevia as linhas, vivia as estrofes e declamava os encantos da vida, nunca o vi triste, ser gentil era um dos defeitos; as crianças lhe amavam, os adultos, bem, os adultos ele aturava...

Se me lembro, poucas foram as varadas – goiabeira das goiabas brancas – bem na diagonal da porta da sala... Sua sabedoria em muito suplantava as leis da psicologia moderna, valorizo as poucas vezes em que senti as lambadas...  Cresci, me tornei homem e, bem no início da fase “do tudo saber”, dei-lhe pesada resposta, estava regressando do quartel, da farda verde-oliva pediu-me que a despisse... Foram as últimas varadas... As lágrimas desceram de seus olhos, que se uniram as que desciam  dos meus, não resisti aos seus braços abertos e num convulsivo abraço unimos nossos sentimentos.

Grande amigo e mestre, na firmeza de suas convicções extingui meus medos. Aprendi a amar e respeitar aquela com quem minha família iria formar... Logo, Deus lhe presenteou com netas, tanto amor e carinho, desprendimento e entrega... E, nós – dois – os filhos aprendendo a ser pai.

Bem cedo ele se foi, ficou a saudade... Não mais ouviremos as melodias que em seu tom baixo cantava após a leitura bíblica antes do sono fecharem nossos olhos de garoto travesso – nossa mãe fazia as leituras após o jantar. Com as letras ele não tinha intimidade, amava as flores e muito bem delas cuidava... Não mais o veremos distribuindo mudas entre os vizinhos mais achegados... Ele se foi, ficou a saudade e o legado. Legado de um coração generoso que se compadecia da dor de qualquer um outro... Vivia as histórias que hoje contamos...

domingo, 7 de agosto de 2016

Oração da maçaneta - Gióia Jr.

Não há mais bela música
que o ruído da maçaneta da porta
quando meu filho volta para casa.

Volta da rua, da vasta noite,
da madrugada de estranhas vozes,
e o ruído da maçaneta
e o gemer do trinco,
o bater da porta que novamente se fecha,
o tilintar inconfundível do molho de chaves
são um doce acalanto,
uma suave cantiga de ninar.

Só assim fecho os olhos,
posso afinal dormir e descansar.

Oh! a longa espera,
a negra ausência,
as histórias de acidentes e assaltos
que só a noite como ninguém sabe contar!

Oh! os presságios e os pesadelos,
o eco dos passos nas calçadas,
a voz dos bêbados na rua
e o longo apito do guarda
medindo a madrugada,
e os cães uivando na distância
e o grito lancinante da ambulância!

E o coração descompassado a pressentir
e a martelar
na arritmia do relógio do meu quarto
esquadrinhando a noite e seus mistérios.

Nisso, na sala que se cala, estala
a gargalhada jovem
da maçaneta que canta
a festiva cantiga do retorno.
E sua voz engole a noite imensa
com todos os ruídos secundários.
- Oh! os címbalos do trinco
e os clarins da porta que se escancara
e os guizos das muitas chaves que se abraçam
e o festival dos passos que ganham a escada!
Nem as vozes da orquestra
e o tilintar de copos
e a mansa canção da chuva no telhado
podem sequer se comparar
ao som da maçaneta que sorri
quando meu filho volta.

Que ele retorne sempre são e salvo,
marinheiro depois da tempestade
a sorrir e a cantar.
E que na porta a maçaneta cante
a festiva canção do seu retorno
que soa para mim
como suave cantiga de ninar.

Só assim, só assim meu coração se aquieta,
posso afinal dormir e descansar.